Uma análise do caso latino-americano de Pedro Levorin e Freddy Mamani: Leitura da condição contemporânea através das fachadas 

Gabriella De Bona, 2023/2

Panorama histórico geral: ideia de fachada no ocidente

   O presente artigo faz um reflexão sobre o conceito de fachada em relação a sua tratativa estética e estrutural ao longo da história arquitetônica renascentista até o presente contemporâneo nos casos latinos americanos de Freddy Mamani e Pedro Levorin. 

   Para compreender a evolução das fachadas primeiro é necessário compreender a origem da palavra “fachada”, para (LEÃO, 2012) a origem da palavra tem origem no século XIV, mas passa a ter um uso comum no século XV com “facciata” (palavra italiana, com origem no Latin “facies” que significa aparência, rosto ou semblante. Para o dicionário Michaelis, “face é parte anterior da cabeça, desde a testa até o queixo”, “cada uma das superfícies planas de um poliedro”; e para o dicionário Hoaiss , região delimitada pelo couro cabeludo, orelhas e pescoço, composta de testa olhos e nariz, boca queixo e bochechas”, “cara, rosto semblante”, “lado externo de alguma coisa mais ou menos plano, fachada, frontispício”. Retomar o significado de origem podemos afirmar que a fachada não é composta como uma superfície meramente plana, maior do que apenas cheios de vazios, mais como parte de um organismo vital de um corpo ou edifício.

   O trecho em que Leão, 2012 aborda a ambiguidade da palavra “face” no contexto da arquitetura, destacando suas conotações geométricas e morais. No sentido geométrico, uma “face” pode se referir a uma superfície plana, como no caso de um poliedro. No entanto, quando se fala em “fachada” no contexto arquitetônico, a palavra pode ter uma conotação antropomórfica, descrevendo uma superfície acidentada com relevos, cheios e vazios.

 O termo “fachada” também é mencionado em uma conotação moral, associado à “aparência superficial” ou “exterioridade enganosa”. Por exemplo, um “casamento de fachada” seria uma representação ou farsa de uma situação para encobrir algo que está por trás.

  O texto de Leão 2012 destaca a desconforto que o termo “fachada” causava aos arquitetos modernos, que buscavam uma arquitetura moderna como “expressão da verdade”. Arquitetos como Loos e Le Corbusier defendiam a eliminação de ornamentos e a transparência das funções internas das edificações.

  1. Michaelis dicionário escolar língua portuguesa: nova ortografia conforme acordo ortográfico da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2023
  2. HOUAISS, Vilar, 2001

  No entanto, o texto aponta que a ideia de “publicidade” e “transparência” da casa moderna pode ser complicada pela localização, urbanidade e organização tipológica da residência. Diferentes tipos de habitação, como casas urbanas entre divisas, casas isoladas em lotes, casas de esquina e vilas modernas, apresentam desafios distintos para alcançar a transparência desejada, muitas vezes comprometida por barreiras físicas ou localizações específicas. Para LEÃO 2012 no título Fachada: uma ideia incômoda  

“A ideia de “fachada”, com todas as suas conotações tradicionais e etimológicas derivadas de “face frontal’, normalmente “adornada”, não era bem-vinda pela arquitetura moderna, que idealizava a “planta de dentro para fora”. Em Vers une architecture Le Corbusier declara: “a planta procede de dentro para fora; o exterior é resultado de um interior”. A superficie externa, segundo essa visão, além de isenta de adornos superficiais, seria resultado direto do interior, da disposição funcional da planta. Os arquitetos modernos advogavam, além disso, a inexistência de hierarquia de frente e fundos, já que o edificio, particularmente a casa, deveria ser visto como objeto tridimensional. O “térreo em pilotis” e o “terraço-jardim”, dois dos “pontos” da nova arquitetura, davam margem à ideia de duas fachadas adicionais, planas e horizontais, vistas desde baixo ou pela parte superior do Edificio. Com volume isolado, cobertura horizontal e pavimento térreo em pilotis aparentes, ao invés de quatro, a casa moderna passava a ter, idealmente, seis fachadas. Em tese, portanto, não haveria mais frente, lateral ou fundo, mas faces equivalentes, cuja composição tinha por objetivo expressar, de forma pragmática, as funções internas do programa. Tais noções estão diretamente relacionadas à ideia de urbanismo proposta pelos modernistas.”

Figura 01. Villa Savoy, Poissy, Le Corbusier, 1929 foto: Medium

Figura 02. Oscar Niemeyer, Biblioteca Nacional complex, Brasilia, 2006 foto:Northern Architecture

Interior da história por Marina Waismann

Marina Weismann foi uma arquiteta latino-americana que se destacou no cenário da arquitetura contemporânea do século XX. Sua paixão pela história e pela cultura latino-americana se reflete em seus projetos inovadores e nas fachadas impressionantes que ela criou.

  Nascida em uma família de arquitetos, Marina sempre teve contato com o mundo da arquitetura desde muito jovem. Ela se formou em uma renomada universidade de arquitetura de Córdoba e começou a trabalhar em um escritório de renome, onde teve a oportunidade de aprender com grandes profissionais do ramo. No entanto, Marina sempre teve o desejo de explorar sua própria identidade como arquiteta latino-americana. Ela sentia que muitas vezes a arquitetura na América Latina era vista como uma mera cópia dos estilos europeus, e ela queria mudar isso. Foi assim que ela decidiu se dedicar a criar fachadas únicas e inspiradoras, que refletissem a riqueza cultural e histórica da região.

  Suas fachadas expressão o momento da arquitetura e da sociedade da qual vivia, combinando elementos tradicionais com uma abordagem contemporânea. Marina utilizava materiais locais e técnicas construtivas tradicionais, mas sempre com um toque de modernidade. Suas fachadas são marcadas por linhas limpas e formas geométricas.

  Marina pesquisou incansavelmente sobre a história da arquitetura latino-americana, buscando referências e inspirações em construções antigas e tradicionais. Ela acredita que é importante resgatar e valorizar a identidade arquitetônica da América Latina, e isso se reflete em cada projeto que ela realizou, sendo sua principal contribuição teórica o livro lançado em 1990 El interior de la historia : historiografia arquitectónica para uso de Latino-americanos.

   O livro Interior da História propõe ser uma caracterização da historiografia arquitetônica, uma disciplina que busca delimitar seu objeto de estudo. Ele segue um processo passo a passo para definir os termos “história” e “historiografia”. Além disso, o texto faz distinções entre a história geral, a história da arte e a história da arquitetura. Ele explora as fronteiras entre história, teoria e crítica na arquitetura.

  As sutilezas conceituais apresentadas no texto são consideradas essenciais para o raciocínio desenvolvido na segunda parte do texto. Essas precisões são relevantes tanto para os leitores de história da arquitetura quanto para pesquisadores e escritores. Ao contrário de uma abordagem restritiva de uma enciclopédia, o texto não impõe limites fixos, mas, em vez disso, alerta para as nuances presentes no texto sobre arquitetura. O autor destaca a importância de compreender essas sutilezas a partir do interior da própria história, envolvendo diálogos com autoridades no pensamento filosófico, histórico e arquitetônico. Essa abordagem sugere uma reflexão mais profunda e uma compreensão mais rica da disciplina, incentivando uma análise crítica e uma apreciação das complexidades inerentes à historiografia arquitetônica.

  O trecho descreve como a segunda parte do livro aborda especificamente as questões relacionadas ao ato de escrever sobre arquitetura na América Latina. Marina Waismann destaca a problemática da adoção a crítica de uma periodização histórica inventada, comumente usada para caracterizar os estilos europeus. Os latino-americanos, segundo Waismann, têm historicamente trabalhado com uma periodização conectada às definições europeias, gerando uma dependência dessas definições de períodos e durações.

Figura 03. Castillo San Felipe de Barajas y en el Museo Naval del Caribe, Cartagena, Colombia, foto: EL PAÍS

 A autora adverte contra a visão de que as ideias e formas da arquitetura chegaram à América Latina como produtos acabados. Em vez disso, ela argumenta que esses conceitos europeus foram livremente interpretados e transculturados de acordo com as circunstâncias locais. Fatores extra-arquitetônicos, como condições políticas e econômicas, muitas vezes determinaram as permanências e descontinuidades.

Diante desse desafio, Waismann propõe uma periodização que não busca continuidades, mas sim os pontos de inflexão, seguindo a ideia de Michel Foucault. Ela constrói a história da arquitetura na região como “rupturas” e “desgarramento”, em vez de articulações em um contexto unitário. Essa abordagem permite que ela identifique elementos de estabilidade que constituem possíveis invariantes latino-americanos.

  Marina explora diferentes durações históricas, distinguindo entre curtas, médias e longas. As durações longas estão profundamente enraizadas nos hábitos regionais e foram naturalizadas ao ponto de não serem mais perceptíveis. Além disso, Waismann destaca recorrências, momentos intermitentes nos quais valores e formas ressurgem periodicamente na prática continental. Isso, segundo o texto, segue uma abordagem semelhante à proposta por Fernand Braudel.

  O trecho destaca a intervenção de Marina Waisman no debate sobre regionalismo crítico na arquitetura. Ela observa que os defensores desse regionalismo muitas vezes interpretam-no como uma reação passiva contra a influência prejudicial da monotonia estéril que vem do centro, defendendo a preservação de algo na região para resistir à modernidade avassaladora.

  Waismann, que está localizada na cidade de Córdoba, interior da Argentina, a cerca de 720 km de Buenos Aires, destaca que autores como Frampton e outros norte-americanos e europeus frequentemente falam sobre regiões a partir do centro. No entanto, ela ressalta que, ao situar-se na periferia da periferia, Córdoba se torna um lócus central para uma reflexão orgânica.

  Ao contrário de definir o regionalismo como uma resistência à modernidade em prol da preservação do status quo, Waismann propõe uma abordagem dinâmica. Ela sugere que o regionalismo não deve ser visto como uma oposição à modernidade, mas como um compromisso tanto com o lugar quanto com o presente. Seu conceito de regionalismo adquire um caráter dinâmico, onde a região se torna um espaço para a possível invenção do futuro.

  Por fim, a autora evita adotar uma visão simplificada de centro versus periferia, rejeitando tanto a ideia de sua “periferia” como um mero eco distorcido das influências do centro quanto a postulação de uma suposta primazia da periferia em relação ao centro. Sua abordagem parece buscar um equilíbrio entre reconhecer a importância do local e comprometer-se com a contemporaneidade, evitando extremos dogmáticos.

3. O Interior da história de 1990 foi o segundo dos livros monográficos que publicados. O terceiro e último – La arquitectura descentrada – de 1995, é continuação natural do raciocínio de O interior da história.

Tratativa das fachadas na América Latina de Levorin e Mamani

  A pesquisa de Pedro Levorin concentra-se em uma tipologia residencial específica: casas com fachadas de platibanda revestidas com materiais industrializados. Essas residências foram observadas em três municípios localizados nos sertões da Bahia, servindo como prismas para compreender as recentes transformações socioeconômicas da região.

 Destaca-se que, mesmo com a utilização de materiais industrializados, a intencionalidade estética presente em fachadas antigas é mantida, apesar de ser produzida por outro tipo de trabalho. A leitura imagética, técnica e material das fachadas é utilizada como base para a discussão, estabelecendo relações com medidas implementadas durante os dois mandatos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010).

  A pesquisa identifica mudanças significativas na capacidade de consumo de parte da população, bem como na produção e interiorização de materiais de construção. Além disso, destaca-se a ampliação do setor industrial relacionado à construção e as grandes transformações na imagem e no corpo da paisagem desses municípios. O uso de fachadas de platibanda revestidas com materiais industrializados serve como um indicador visual e material das transformações socioeconômicas e políticas ocorridas durante esse período, oferecendo insights valiosos sobre a dinâmica regional e suas relações com as políticas implementadas.

Figura 06. Wattle and daub house Foto:Pedro Levorin

   Freddy Mamani é um arquiteto boliviano conhecido por seu trabalho inovador no estilo arquitetônico chamado “cholet”. Nascido em 1971, Mamani pertence à comunidade indígena aymara. Ele ficou famoso por suas contribuições à arquitetura na cidade de El Alto, que fica ao lado de La Paz, a capital da Bolívia.

  O cholet  é um estilo arquitetônico que combina elementos da arquitetura andina tradicional com detalhes modernos e vibrantes. As construções de Mamani são caracterizadas por cores intensas, formas geométricas e uma mistura única de elementos arquitetônicos tradicionais e contemporâneos. Ele incorpora motivos culturais e símbolos indígenas em suas obras, promovendo assim a valorização da identidade cultural local.

   Os projetos de Freddy Mamani têm atraído atenção internacional, não apenas por sua originalidade, mas também por desafiar as convenções arquitetônicas tradicionais modernas. Seus edifícios são frequentemente utilizados para fins comerciais, como salões de festa, destacando-se como espaços multifuncionais.

Figura 04. Fachada do Imperio del Rey cholet em El Alto, projetado e construído pelo arquiteto Freddy Mamani. Foto: ArchDaily

  A abordagem única de Mamani à arquitetura o tornou uma figura proeminente, e ele recebeu reconhecimento tanto na Bolívia quanto internacionalmente pelo seu impacto na paisagem urbana e por sua capacidade de unir tradição e modernidade em sua obra.

Figura 05. Vista do espaço do salão de baile, bar e varanda dentro do Imperio del Rey cholet. ArchDaily

 O cholet surgiu como uma expressão arquitetônica representativa da indignidade urbana nas últimas duas décadas, especialmente em El Alto, embora haja alguns exemplos em outras partes da Bolívia. Esses edifícios multifuncionais de vários andares são predominantemente construídos por e para uma elite econômica indígena, que mantém raízes locais e conexões internacionais.

  A própria palavra “cholet” combina “cholo,” termo boliviano que se refere aos indígenas urbanizados, com uma referência sutil ao glamour associado aos chalés alpinos suíços.                  Os choutes são notáveis por sua ornamentação vibrante tanto no interior quanto no exterior, exibindo uma clara organização de três partes quando observados externamente.

  A decoração elaborada desses edifícios geralmente incorpora uma variedade de formas e cores, fortemente influenciadas pela cultura Aymara. Símbolos culturais como a chalana, ou cruz andina, e outros elementos tradicionais são frequentemente incorporados, destacando a identidade cultural e étnica das comunidades indígenas. A arquitetura dos choutes, assim, não apenas reflete a expressão de uma elite indígena, mas também serve como uma representação visual vibrante e distintiva da rica herança cultural boliviana. 

No texto de SCHENTAG, 2023 descreve a adaptação das comunidades Aymara ao ambiente urbano de El Alto, evidenciando os desafios enfrentados ao transitar de um ambiente rural para uma cidade. Um dos desafios mencionados é a falta da exposição regular ao sol, uma característica predominante no campo que regulava diversos aspectos da vida, incluindo o tempo e os ritmos espirituais, comerciais e físicos.

  As residências construídas no topo dos choutes, edificações típicas da região, refletem a importância do sol para essas comunidades. Os choutes são projetados de forma a maximizar a exposição ao sol, usando orientação específica, grandes janelas e outros detalhes para capturar calor e fornecer luz abundante. A descrição menciona características arquitetônicas como telhados pontiagudos, frontões inspirados no pagode e diversos detalhes ornamentais que distinguem as residências e mostram influências de design europeu, especificamente de chalés.

  O texto destaca a fusão única de símbolos arquitetônicos associados ao sucesso financeiro europeu com elementos de empreendimentos de capital global, referências espirituais indígenas e práticas coloniais. Essa mistura resulta em uma expressão arquitetônica orgulhosa e distintiva, que representa a identidade Aymara em um contexto urbano moderno. É uma forma de exibição cultural que funde tradições locais com influências globais, criando uma verdadeira representação da diversidade e adaptação das comunidades Aymara em El Alto.

 4. A palavra “cholet” combina a palavra boliviana “cholo” (alcances indígenas urbanizados) com uma referência solta ao glamour de um chalé alpino suíço. Os Choutes são caracterizados por sua ornamentação de cores vivas por dentro e por fora, com uma organização de três partes visivelmente evidente do lado de fora. A ornamentação elaborada normalmente apresenta muitas formas e cores afiliadas principalmente à cultura Aymara, inspiradas em símbolos como o chalana ou a cruz andina, entre outros.

BIBLIOGRAFIA

  • WAISMANN, Marina. O Interior da História. Bogota, Colombia: Escala, 1990. 141 p.
  • LEÃO, Silvia Lopes Carneiro. A evolução do conceito de fachada: do renascimento ao modernismo. 2012. 16 f. Tese (Doutorado) – Curso de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2012. Cap. 1. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/83680/000906120.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 nov. 2023.
  • SCHENTAG, Annie. Neo-Andean Architecture in El Alto, Bolivia. Society Of Architectural Historians, Chicago, Illinois, v. 1, n. 1, p. 1-1, 25 ago. 2023. Disponível em: https://www.sah.org/community/sah-blog/sah-blog/2023/08/25/neo-andean-architecture-in-el-alto-bolivia#4. Acesso em: 20 nov. 2023.
  • Shafik Meghji, “A Cidade Acimada da Bolívia”, Geográfica (maio de 2022), 42–49.
  • Alejandro Barrientos e Joaquin Cuevas, El Altopia (La Paz, Bolívia: Editorial El Cuervo, 2022), 8.
  • Angus Mcnelly, “Modernidade Barroca na América Latina: Situando a Indignidade, a Indignidade Urbana e a Economia Popular”, Boletim de Pesquisa Latino-Americana 41.1 (2022): 6–22.